Onze de Agosto é uma data que não pode ser esquecida pelos donos de restaurantes. Muitas coisas são comemoradas nesse dia, entre elas destaco: Data da fundação da Morfética (Ponte Preta), dia do garçom, dia do advogado e por conseqüência, o dia da pindura. (Quis dizer pindura mesmo, não pendura!).
Para quem não sabe, num onze de agosto do passado, os alunos de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, resolveram, para comemorar o aniversário da faculdade, dar calote nos bares, restaurantes e cafés da cidade. Essa sacanagem, por mais que fosse denunciada pelos proprietários dos estabelecimentos não resultou em nenhuma punição aos caloteiros, pois delegados são, antes de tudo, advogados.
Esse primeiro calote, já no ano seguinte, tornou-se tradição e espalhou-se pelo Brasil. Não há cidade nesse país que abrigue uma faculdade de Direito em que os donos de restaurantes não fiquem histéricos nessa data, ano após ano.
Como advogados adoram rituais, eles criaram uma “Carta de Pindura”, que depois de um discurso carregado com os mais incompreensíveis termos do vernáculo e é entregue ao infeliz comerciante. Em lugar do dinheiro.
Depois de anos, tomando calotes, descobri que a melhor política é me antecipar às escusas intenções dos estudantes e propor um acordo que onere menos meu caixa e ainda assim não frustre a farra dos meus potenciais clientes do futuro.
Nas noites de Onze de Agosto, fico atento como um perdigueiro, farejando cada gesto, cada olhar de meus clientes, qualquer coisa que denuncie os aprendizes de trapaceiros, para que possa me antecipar e tentar minimizar o prejuízo. Ao longo dos anos, me tornei quase um especialista em detectar esses pré-cidadãos-respeitáveis, vou dar dois exemplos de como reconhece-los e mante-los sob controle:
A)- Rapazes:
Grupo com no mínimo três, com idades entre 20 e 28 anos. O que tem aparência de mais velho e experiente usa bermudas, tênis sem meia e camiseta mal passada, comporta-se de modo muito natural e incorpora o Don Juan das garçonetes O coitadinho do mais jovem, possivelmente calouro, está com calças de barra italiana, sapatos ultra-bem-engraxados, camisa social, normalmente azul clara e, com um par de olhos maiores que pizzas que arregalam ainda mais, cada vez que me aproximo. Se um ou mais deles estiverem usando gel nos cabelos, nem me dou ao trabalho de observar mais, tomo a iniciativa, fazendo cara de mau e parto pra cima: - Vamos negociar essa "pindura" - Vocês têm direito a tantas pizzas e dois chopes para cada um, ok? - Mas no final terão que pagar aquele mico de subir nas cadeiras e ler a carta de "pindura" como manda a tradição; Nada de uísque, nada de vinho e nem sobremesas, certo? - Nunca discordaram, mas o tal "calouro" normalmente foge para o banheiro na hora do discurso. No ano seguinte ele voltará com um estilo mais informal.
B)- Moças:
Com idades ligeiramente inferiores às dos rapazes acima, aparecem sempre em grupos maiores. Mais de um terço delas usa saia ou vestido pouco acima ou pouco abaixo do joelho (algumas parecem que já nasceram formais). Normalmente já "dão bandeira" quando chegam. Ficam todas aglomeradas na porta do restaurante, claramente tentando traçar uma estratégia e juntar coragem, ninguém toma a iniciativa de entrar. Quando encaro o grupo e vou andando em direção a elas, me sinto repugnante. A cada passo que dou, elas dão outro, em direção contrária, se espalhando pela calçada. Mantendo posição e me encarando ficam apenas duas ou três líderes. Uma dessas, inevitavelmente, vai estar cheia de piercings e de calças ou vestido indiano até os pés, a briga vai ser boa, todo ano é. Quando me apresento, dou as boas vindas e pergunto se posso ajudá-las. Aquela dos piercings responde sem muita convicção: -Não cara. A gente ta esperando mais uma galera, aí. Nesse ponto a metade das que fugiram se afasta ainda mais, segurando o riso, a outra metade avança em minha direção, muito cuidadosamente, movida pela curiosidade. Parto para a negociação: -É "pindura"? A metaleira e/ou metalizada, balançando a cabeça e olhando para os próprios pés e começa um discurso prevendo uma desistência honrosa: -Qualé, meu? A gente só ta esperando uma galera. Num pode fica aqui não? Olha, a rua é pública... E assim vai... Até que uma outra futura-advogada intervém e começa a contar, com voz de criancinha, que ela freqüenta a pizzaria desde pequena, que a nossa pizza baiana é inesquecível, etc, etc, etc...
Deixo a eloqüência dela ir às alturas e finalmente "sou convencido" por seus argumentos. Mas ainda me resta uma pequena vingança: Desmascara-la. Conto pra moça que em nossa pizzaria não existe a versão "baiana". Elas sempre insistem:
-Mas tinha, vocês tiraram? Que pena... Então foi no tempo dos outros donos, quando eu vinha aqui com meus pais... Explico que eu sou o fundador e que jamais a pizza baiana freqüentou nosso cardápio e aproveito o constrangimento dela para fazer um pequeno discurso sobre que fundamentar a argumentação com a verdade sempre é melhor política que improvisar a mentira, etc, etc, etc...
Proponho o mesmo esquema de "pindura" que dos rapazes. Elas aceitam com gritinhos.
Acomodam-se à mesa. Riem e falam todas ao mesmo tempo. Vão-se as pizzas, vão-se os chopes, imploram por outra rodada. Eu dou. São tão bonitinhas...
No final sou agraciado com intermináveis: -Obrigada tio. -Tio, você é um amor. -Tio, que pizza, hein? -Nossa, tio, foi "dimais"...
Quando penso que acabou, vejo aquela dos piercings, ainda à mesa, "enxugando" os copos de suas colegas que não foram devidamente esgotados. Passa por mim, abre um sorriso sincero e dispara: -Valeu, cara!
Fico olhando ela ir embora, naquele gingado hippie e imaginando que talvez um dia torne-se uma grande advogada, pelo menos, foi a única que teve a sensibilidade de captar o que diziam os meus olhos de meritíssimo: Tio é a PQP!
Para quem não sabe, num onze de agosto do passado, os alunos de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, resolveram, para comemorar o aniversário da faculdade, dar calote nos bares, restaurantes e cafés da cidade. Essa sacanagem, por mais que fosse denunciada pelos proprietários dos estabelecimentos não resultou em nenhuma punição aos caloteiros, pois delegados são, antes de tudo, advogados.
Esse primeiro calote, já no ano seguinte, tornou-se tradição e espalhou-se pelo Brasil. Não há cidade nesse país que abrigue uma faculdade de Direito em que os donos de restaurantes não fiquem histéricos nessa data, ano após ano.
Como advogados adoram rituais, eles criaram uma “Carta de Pindura”, que depois de um discurso carregado com os mais incompreensíveis termos do vernáculo e é entregue ao infeliz comerciante. Em lugar do dinheiro.
Depois de anos, tomando calotes, descobri que a melhor política é me antecipar às escusas intenções dos estudantes e propor um acordo que onere menos meu caixa e ainda assim não frustre a farra dos meus potenciais clientes do futuro.
Nas noites de Onze de Agosto, fico atento como um perdigueiro, farejando cada gesto, cada olhar de meus clientes, qualquer coisa que denuncie os aprendizes de trapaceiros, para que possa me antecipar e tentar minimizar o prejuízo. Ao longo dos anos, me tornei quase um especialista em detectar esses pré-cidadãos-respeitáveis, vou dar dois exemplos de como reconhece-los e mante-los sob controle:
A)- Rapazes:
Grupo com no mínimo três, com idades entre 20 e 28 anos. O que tem aparência de mais velho e experiente usa bermudas, tênis sem meia e camiseta mal passada, comporta-se de modo muito natural e incorpora o Don Juan das garçonetes O coitadinho do mais jovem, possivelmente calouro, está com calças de barra italiana, sapatos ultra-bem-engraxados, camisa social, normalmente azul clara e, com um par de olhos maiores que pizzas que arregalam ainda mais, cada vez que me aproximo. Se um ou mais deles estiverem usando gel nos cabelos, nem me dou ao trabalho de observar mais, tomo a iniciativa, fazendo cara de mau e parto pra cima: - Vamos negociar essa "pindura" - Vocês têm direito a tantas pizzas e dois chopes para cada um, ok? - Mas no final terão que pagar aquele mico de subir nas cadeiras e ler a carta de "pindura" como manda a tradição; Nada de uísque, nada de vinho e nem sobremesas, certo? - Nunca discordaram, mas o tal "calouro" normalmente foge para o banheiro na hora do discurso. No ano seguinte ele voltará com um estilo mais informal.
B)- Moças:
Com idades ligeiramente inferiores às dos rapazes acima, aparecem sempre em grupos maiores. Mais de um terço delas usa saia ou vestido pouco acima ou pouco abaixo do joelho (algumas parecem que já nasceram formais). Normalmente já "dão bandeira" quando chegam. Ficam todas aglomeradas na porta do restaurante, claramente tentando traçar uma estratégia e juntar coragem, ninguém toma a iniciativa de entrar. Quando encaro o grupo e vou andando em direção a elas, me sinto repugnante. A cada passo que dou, elas dão outro, em direção contrária, se espalhando pela calçada. Mantendo posição e me encarando ficam apenas duas ou três líderes. Uma dessas, inevitavelmente, vai estar cheia de piercings e de calças ou vestido indiano até os pés, a briga vai ser boa, todo ano é. Quando me apresento, dou as boas vindas e pergunto se posso ajudá-las. Aquela dos piercings responde sem muita convicção: -Não cara. A gente ta esperando mais uma galera, aí. Nesse ponto a metade das que fugiram se afasta ainda mais, segurando o riso, a outra metade avança em minha direção, muito cuidadosamente, movida pela curiosidade. Parto para a negociação: -É "pindura"? A metaleira e/ou metalizada, balançando a cabeça e olhando para os próprios pés e começa um discurso prevendo uma desistência honrosa: -Qualé, meu? A gente só ta esperando uma galera. Num pode fica aqui não? Olha, a rua é pública... E assim vai... Até que uma outra futura-advogada intervém e começa a contar, com voz de criancinha, que ela freqüenta a pizzaria desde pequena, que a nossa pizza baiana é inesquecível, etc, etc, etc...
Deixo a eloqüência dela ir às alturas e finalmente "sou convencido" por seus argumentos. Mas ainda me resta uma pequena vingança: Desmascara-la. Conto pra moça que em nossa pizzaria não existe a versão "baiana". Elas sempre insistem:
-Mas tinha, vocês tiraram? Que pena... Então foi no tempo dos outros donos, quando eu vinha aqui com meus pais... Explico que eu sou o fundador e que jamais a pizza baiana freqüentou nosso cardápio e aproveito o constrangimento dela para fazer um pequeno discurso sobre que fundamentar a argumentação com a verdade sempre é melhor política que improvisar a mentira, etc, etc, etc...
Proponho o mesmo esquema de "pindura" que dos rapazes. Elas aceitam com gritinhos.
Acomodam-se à mesa. Riem e falam todas ao mesmo tempo. Vão-se as pizzas, vão-se os chopes, imploram por outra rodada. Eu dou. São tão bonitinhas...
No final sou agraciado com intermináveis: -Obrigada tio. -Tio, você é um amor. -Tio, que pizza, hein? -Nossa, tio, foi "dimais"...
Quando penso que acabou, vejo aquela dos piercings, ainda à mesa, "enxugando" os copos de suas colegas que não foram devidamente esgotados. Passa por mim, abre um sorriso sincero e dispara: -Valeu, cara!
Fico olhando ela ir embora, naquele gingado hippie e imaginando que talvez um dia torne-se uma grande advogada, pelo menos, foi a única que teve a sensibilidade de captar o que diziam os meus olhos de meritíssimo: Tio é a PQP!
Um comentário:
Muito bom!
Sou estudante de Direito, mas ainda não fiz o dito "pindura". Meus colegas estão muito receosos. No início do ano que vem pego minha carteira de estagiário da OAB e partirei para o meu primeiro "pindura" e espero contar com o bom humor de um dono de estabelecimento como você. Mas me intrigou algo que eu achava ser "lei": caso seja fixado um ofício informando que o estabelecimento fora vítima de um "pindura", esse não pode se eximir de participar da brincadeira?
Abraços!
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