quarta-feira, 14 de março de 2007

TESTAMENTO


Existe uma síndrome, que não é incomum, cujos sintomas precedem as tempestades de verão. Tem alguma relação com a ionização do ar nas camadas mais próximas ao solo. Os indivíduos acometidos por ela manifestam sintomas horríveis como tonturas, moleza generalizada, falta de concentração, deficiência respiratória e outros tantos que nem vale a pena citar. Quanto maior a promessa de tempestade, mais fortes são os sintomas que cessam como mágica no primeiro vento úmido de chuva que atinge o infeliz.
No início do verão é sempre mais dramático, não sei explicar a razão.
Eu sou um desses barômetros humanos e dias depois do meu aniversário, em novembro último, fui surpreendido com a primeira crise da temporada e a mais violenta que já experimentei. Estava em casa sozinho quando os sintomas chegaram todos de uma vez em sua intensidade máxima. Mal conseguia respirar. Entrei em pânico e achei que ia morrer. A coisa foi tão inesperada que não associei os sintomas ao clima, já que normalmente o mal-estar vem chegando de mansinho.
Quieto, nessa cadeira onde digito agora, comecei a imaginar que deveria abrir a porta para facilitar um eventual socorro ou até a entrada do IML. Mas não conseguia me mover.
Pra quem tem um pé na hipocondria é fácil nessas horas até ler o obituário do dia seguinte com seu nome em destaque.
Pensei em ligar para alguém. Mas pra quem? Se chamasse a recém-ex-mulher seria um vexame, caso eu não morresse. Ligar pro filho? A ex ficaria sabendo do mesmo modo. Que situação...
Esse inferno durou uns quarenta minutos até que a tormenta chegou violenta e levou embora todo meu sofrimento, instantaneamente.
Feliz da vida, saí para o jardim e me encharquei de chuva numa alegria de ressuscitado. Que bom que era só a tal síndrome barométrica. Que bom que eu não liguei pra ninguém.
Mesmo molhado, voltei pra frente do computador e, meditando sobre todos os maus pensamentos que tive, escrevi com rimas mancas um romântico (rsrsrs) adeus.
Na prosa já tropeço em cada vírgula, escrever em versos então, para quem nunca estudou métrica, só é permitido para quem acabou de “escapar da morte”.
Peço perdão pela pobreza de estilo e prometo não tentar mais coisas assim.

Testamento:

Amigo, chore.
Mas só por hoje. Chore.
Vá lá em casa e explore
Ache umas cartas de amor,
E um pouco de humor
Gravados no computador

Tem ainda guardados
Uns poucos trocados
Embrulhados num cobertor

Gaste tudo hoje
Chame os amigos
E também os inimigos
A cada um, em meu nome
Da-lhes uma flor.

Faça hoje uma festa
Até pra quem não presta
Pois não tenho mais rancor
Vive o que te resta
Põe um sinal na testa
Fala do meu Amor

Descansei, adormeci, serenei
As canelas, estiquei
O paletó, abotoei
Já não sei mais quem sou
Foi-se o ego
No último prego
Que o papa-defunto pregou

Vasculhe minha carcaça
Veja o que sobrou
Pra quem precisa dê de graça
Os pedaços sem cachaça
Mas não diga quem doou

Menos o coração
Que agora arrebentou
Peço especial atenção
Pois foi ele que me matou
Não pela vida desregrada
Mas pela falta da amada
Que você me apresentou

Entrega a ela o meu algoz
Fala com minha voz:

Eis aqui o que sobrou
Do amigo que tanto te amou
Discreto defunto
O que mais queria
Era de ti ficar junto

Permito que ria
Já que não tinha outro assunto
Que não fosse tua alegria

Seu último desejo
Antes que a vida lhe desse despejo
É que tu, em oração
Procure um jazigo
Que sirva de abrigo
Pro seu coração

E mais um pedido:
Que escreva na pedra
Sobre o teu apelido
Me espera, querido

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