segunda-feira, 24 de setembro de 2007

JORNAL CORREIO POPULAR 23/09/2007

Para quem não é de Campinas, aí vai a entrevista que dei para o reporter João Nunes e foi publicada em página inteira exatamente um ano antes de minha partida. Não posso deixar de registrar aqui a fidelidade e sensibilidade desse profissional que deu um enorme impulso ao projeto.
Valeu João!

Um ano de Kombi pela América do Sul

Campineiro de 45 anos investe em antigo sonho e recupera veículo da década de 60 para uma viagem pelo continente

João Nunes
DA AGÊNCIA ANHANGÜERA
nunes@rac.com.br

Há mais de 20 anos, o campineiro César Cury imaginou viajar pelo mundo, num veleiro, ao lado da mulher e do filho. Chegou até a fazer cursos na área. O tempo passou, o veleiro ficou para trás e ele transferiu o projeto para um ônibus, mas esse tampouco saiu do papel. Em vez disso, viu o casamento terminar, e o sonho da viagem desmoronar. Aos 45 anos e separado, ele brinca dizendo que poderia ter comprado um carro esporte, mas inverteu a expectativa e, “por questão de estilo”, adquiriu uma Kombi. E como não teria mais a companhia da mulher e do filho, decidiu colocar o pé na estrada sozinho, numa viagem pela América do Sul. De Kombi.

Mas não é uma Kombi qualquer, mas fabricada em 1968, ou seja, que irá completar 40 anos no ano que vem, e adquirida num mercado livre na internet ao preço de R$ 2.999,00. Cury, sujeito aparentemente sério e tranqüilo, de gestos pausados e voz clara e firme, decidiu batizar o veículo de Hebe, por razões óbvias, “pois é perua, coroa e está enxuta”. E garante que tentará apresentar a “Hebe” para a Hebe. A Camargo. “Acho que ela vai gostar, porque é uma homenagem carinhosa e toda perua se orgulha de ser perua.”

O projeto fez Cury revisitar o sonho de mais de 20 anos, porque sempre acreditou que a aventura está no inconsciente coletivo. Mas sua aventura está só começando. Neste momento, o veículo passa por processo de restauração, de forma a torná-la o mais próximo possível do original. E, obedecendo questões meteorológicas, vai partir de Campinas daqui a um ano — 22 de setembro de 2008 —, saindo de Bertioga, Litoral paulista, em um trajeto que durará 365 dias.

Com o sugestivo nome de Kombinações — Kombi com nações —, o projeto prevê, inicialmente, como subproduto, um livro com as histórias da Hebe. Quando a conheceu, Cury, que hoje é empresário proprietário de uma pizzaria em Sousas, o veículo era azul escuro. Não gostou da cor, até porque a restauração exigia um azul claro, a cor da Kombi mexicana do ano de 1964. Ao iniciar o processo de limpeza, encontrou por baixo do azul escuro a cor preta com detalhes em dourado. Ocorre que Hebe tinha sido, por longo período, um carro funerário em Monte Alegre do Sul (a 65 quilômetros de Campinas).

Essa história estará no livro que ele pretende escrever enquanto viajar. “Vou conversar com ela para que me conte suas histórias”, afirma Cury, com visível humor. São histórias reais, mas haverá também episódios fictícios e baseados em comentários da viagem, filosofias e pensamentos. “Conheço várias histórias dela. Por exemplo, depois de carro funerário, ela serviu a um grupo de pagode. E, agora, passa por reforma em grande estilo, como se começasse a vida aos 40, e ela vai dizer como se sente na nova fase.”

Um segundo livro será a narração da viagem em si, mas isso ao término do projeto. Enquanto navega pelas estradas latino-americanas, Cury alimentará o blog criado especialmente para o projeto (http://kombinaestrada.blogspot.com) e até apostará numa veia jornalística, de narrativas dos acontecimentos que, certamente, o cercarão durante o trajeto. Os livros devem ser editados pela editora Arte Escrita.

Solidão

O empresário assume sua solidão no projeto, mas sabe que, também, está falando de mudança de vida. Há dez anos está colado à pizzaria, na qual trabalha diariamente. “Adiei o projeto por 20 anos, mas sempre senti a necessidade interna de sair pela estrada. É um sonho antigo e tenho consciência de que vou me afastar da vida atual e, quando regressar, estarei desempregado. Mas talvez encontre outra atividade ou outro lugar para morar, mas é possível que volte para o mesmo lugar, Joaquim Egídio, de onde sairei e que acho maravilhoso.”

Ao mesmo tempo em que fala em sonho e do lado poético do Kombinações, percebe que esse tomou outros rumos, digamos, mais comerciais, pois até patrocinador entrou na jogada. Um deles, claro, é a própria Volkswagen, e talvez a Petrobras e uma empresa de telefonia. O fato é que, em princípio, deverá receber US$ 1,5 mil por mês durante um ano. Mas, independentemente desse dinheiro, tem a própria forma de manter o objetivo em pé.

Sabe também que, após a viagem, virão livros, palestras e outros produtos. E há contatos para transmissões via Rádio Globo, além de poder disponibilizar transmissões de TV em tempo real ou gravadas, do blog, que será atualizado diariamente, e envio de fotos, pois vai manter um escritório em Campinas que executará esse trabalho. Não por acaso, Cury reviu recentemente Diários de Motocicleta, de Walter Salles, sobre a mítica viagem de Che Guevara, de motocicleta, pela América Latina no final dos anos 50. Naquele caso, a aventura levou Che a uma tomada de consciência. Neste, o empresário propõe de forma criativa uma grande virada na própria vida. De Kombi.

OS NÚMEROS

140 QUILÔMETROS
Fará César Cury por dia na viagem pela América do Sul.

44 MIL QUILÔMETROS Ele vai percorrer durante os 365 dias da viagem.

Viagem seguirá no ritmo da velha companheira, Hebe

Com o roteiro milimetricamente planejado, aventureiro diz que o “grande barato” é vencer o percurso lentamente

César Cury sabe que a viagem não será só uma viagem. Depende de como é feita e em que velocidade se anda. Isso lhe remete a um outro trajeto que realizou pelo chamado Caminho do Sol, este, a pé: 240 quilômetros em 11 dias entre Santana de Parnaíba (SP) e Águas de São Pedro, réplica brasileira do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha.

Ele faz um paralelo entre os dois trajetos e os chama de peregrinação. Eles têm ritmo próprio, não é uma velocidade que deva ser imposta. “No Caminho do Sol, quem anda rápido se cansa logo. E ninguém está apostando corrida”, ressalta. Se fosse assim, diz, viajaria num Land Rover, e isso seria muito fácil. Na Kombi, tem de se obedecer o ritmo dela, sem forçar. “O grande lance é poder fazer essa viagem num veículo lento e antigo. Basta conhecimento e bom senso. Aí é que está a graça.”

E se apressa em fazer nova ressalva: “Nada há de heróico no que estou fazendo. Pode ser romântico, por causa do abandono do meu estilo de vida, da casa, dos amigos e da família. Heróico foi o Che, que encarou o desconhecido sem qualquer planejamento. No meu caso, a razão é que parei de me levar a sério”, diz, em uma referência à viagem de moto feita por Che Guevara pela América Latina.

Também garante que aceitará hóspedes eventuais na Kombi, mas o comandante dessa história é ele. “Não há problemas em ter hóspedes, pois alguns amigos planejam me encontrar em determinados lugares ou talvez eu encontre alguém pelo caminho, mas o ritmo quem determina sou eu.” Afinal, ele não quer saber de conflitos. “Quero curtir a solidão sem conflitos. Aceito hóspedes, não sócios.”

Planejamento

E lembra que os 100 primeiros d
ias, até Ushaia, extremo Sul da Argentina, estão milimetricamente planejados. De lá, pega um barco, viaja 800 quilômetros até o sul do Chile e entra na Rodovia Panamericana, a mais longa do planeta, pois termina no Norte do Canadá. O planejamento é tal que ele sabe exatamente quantas paradas fará. Serão 120 em 365 dias. Tal apego ao plano não significa que ele não espera improvisos e até mudanças de rota. “É possível”, garante, “mas, antes de tudo, estão meus compromissos firmados com patrocinadores, mas mudanças poderão acontecer, pois não é um projeto militar”.

E quando o repórter pergunta se ele está preparado para enfrentar problemas mecânicos e de informática, ele responde que sim e remete à figura do pai, o que talvez até explique porque optou por viajar de Kombi. Seu pai era apaixonado por Kombis, chegou a ter duas simultaneamente. E foi com a memória do pai, de quem aprendeu uma grande lição, que ele encerra a conversa: “Nunca seja refém de nada nem de ninguém”. (JN/AAN)