segunda-feira, 23 de abril de 2007

AUTO-RETRATO EM TRÊS POR QUATRO.


Foi assim:
Eu precisava de um boné e de uma camiseta de um patrocinador para posar com eles numas fotos que vão ilustrar uma entrevista que dei para a revista da Confederação Nacional do Transporte, a CNT. Trata-se de uma edição focada no cinqüentenário da Kombi no Brasil, comemorados esse ano. Como às vezes acontece, especialmente quando temos prazos a cumprir, as coisas começaram a dar errado. A camiseta e o boné não chegaram a tempo, o fotógrafo ficou ilhado na chuva de sábado e eu tive que me virar com o que não tinha na madrugada de domingo.
Cheguei em casa por volta da uma da manhã, depois de ralar o dia todo nas compras e mais de seis horas de movimento intenso na pizzaria, mas estava determinado a mandar as tais fotos para a revista.
A proposta original era de eu aparecer com os logotipos do patrocinador dentro ou ao lado da Kombi, mas nessas alturas do campeonato, qualquer coisa era melhor do que nada. Comecei a pensar num lugar para as fotos, fiquei apavorado. Acontece que moro numa casa mínima, costumo dizer que minha vida é três por quatro, afinal o quarto é 3 X 4, a cozinha é 3 X 4 e a sala não é diferente. Pra complicar um pouco mais, tenho 1,80m, o que torna tudo aqui meio desproporcional.
Fiquei imaginando como ligar o assunto da entrevista à minha imagem, já que a perua estava internada na funilaria e impossibilitada e comparecer ao “set” numa madrugada de domingo. Ocorreu-me então posar com as minhas miniaturas de Kombi, mas ainda assim faltava um lugar, e mais faltante do que isso, o tempo.
Numa casa tão pequena, em noite de chuva, só vi duas possibilidades: O quarto ou a sala. O primeiro foi logo descartado, pois no seu centro há uma super-big-cama-king-size, herança dos tempos de casado. Evidentemente que sobre ela não poderia ser, afinal não estava posando para a G-Magazine. Na sala, abarrotada de coisas, seria menos inconveniente. Mas onde me colocar? Que elemento usaria de fundo? A estante, o computador, uma máscara de Buda? Pensei em pendurar um lençol na parede para fazer um fundo-infinito, mas descobri que não tenho nenhum lençol sem estampas, além do fato de não ter visto na revista nenhuma foto assim, com cara de estúdio. Trata-se de jornalismo, não uma publicação de estilo. Cogitei posicionar a máquina sobre a cristaleira e ficar no chão com as Kombinhas, feito um menino. Logo desisti, primeiro porque teria que colocar a mesa-de-centro na chuva, mas principalmente porque, visto de cima, numa sala minúscula com brinquedos na mão, eu ficaria parecendo um coroa esquizofrênico numa solitária de manicômio.
Finalmente optei por um close, com as miniaturas próximas ao rosto, imaginei que assim o fundo não teria importância. Coloquei as Kombis sobre o pequeno sofá branco, uma almofada no lugar onde ficaria a minha cara e fui enquadrar a cena na telinha da máquina amadora. Pareceu bom e bati uma foto de teste. O branco do sofá explodiu com o flash e praticamente velou todos os outros elementos. Precisava cobri-lo com alguma cor escura e não refletiva. Depois de testar com toalhas de banho, saco de dormir e tudo que tinha mais de um metro quadrado, achei uma folha de papel de embrulho tipo kraft. Foi o que ficou melhor.
Recortei um pedaço de sacolinha de supermercado e colei sobre a lâmpada do flash para amenizar a luz intensa e seus efeitos indesejáveis como brilhos na pele e olhos vermelhos. Ajustei o mini-tripé, acionei o automático e corri para a frente da máquina, sentando no chão e tentando fazer uma cara inteligente. Flash! Saco, esqueci de tirar os óculos! Outra: Flash! Que cara de imbecil! Flash! A expressão ficou razoável, mas essa careca brilhante não está legal. Na falta do boné do patrocinador coloquei o da Volkswagem mesmo. Resolvo ligar a máquina no drive e, diante da lente, ficar me movendo e fazendo caras e bocas entre um flash e outro, achei que assim poderia captar-me “mais natural”. Flash! Flash! Flash! Flash! Flash! Cinco fotos, não é possível que não tenha saído umazinha razoável! -Nenhuma ficou boa. Quando acionei o drive, mudei acidentalmente o enquadramento, todas ficaram péssimas e com a testa cortada.
Entrei em desespero quando a luzinha da bateria começou a piscar. Desliguei a máquina, na esperança de pensar em alguma coisa genial para as últimas fotos antes de ficar sem pilhas. Coloquei na boca um pedacinho de Toblerone, acendi outro cigarro e decidi que tentaria só mais uma vez, que essa sairia perfeita. Incorporei o Sean Connery, ensaiei um sorriso meio de lado e fui à luta. Flash! Sem os óculos pude ver na telinha da máquina que essa tinha ficado bacana, Retirei a memória da câmera e transferi as imagens para o computador. Antes de chegar à última me diverti muito com as horrorosas anteriores. Abri o editor de imagens e ampliei a foto do galã... BANGUELA! Credo, o que foi isso? Apliquei zoom e não pude acreditar no que via: Meu canino direito completamente coberto de chocolate.
Já eram três da madrugada e eu ali, passando foto por foto e já não achando mais graça em nada, pensando em escrever um e-mail para a revista pedindo desculpas, falando da chuva, do fotografo ilhado, da falta do boné do patrocinador e que eu fico péssimo em closes.
Respirei fundo, me lembrei que sou brasileiro e que não desisto diante das caras feias, patéticas ou banguelas que desfilam no monitor. Vamos então até o derradeiro suspiro dessas baterias, pensei, me inspirando naquela cena de Rock I, quando no último segundo o Stallone ganha a luta mesmo estando morto.
Faço a checagem de todos os itens: Dentes escovados, óculos afastados, boné na cabeça, enquadramento com a almofada no lugar de meu rosto, flash com a cobertura de saco de supermercado, automático piscando e a luz de pilhas fracas também. Flash! Acho que ainda dá pra mais uma. Flash! A máquina se desliga sozinha e recolhe a objetiva. Transfiro as fotos para o computador e constato que finalmente uma delas ficou razoável, aquela que estou com um quase sorriso resignado, a que mais expressa o meu estado de espírito naquele momento. O leitor desavisado, pode achar que estou olhando para a Kombi com um ar sonhador, antevendo viagens maravilhosas, praias paradisíacas e milhares de quilômetros de estradas planas, sem buracos, pedágios ou congestionamentos.
Ainda tive que dar uns retoques no retrato, apaguei um interruptor, uma tomada e um pernilongo esmagado na parede à minha esquerda, também tirei a fechadura cromada da porta e as chaves que pendiam sobre a minha cabeça, eliminei um brilho vermelho no olho esquerdo e deletei da bochecha uma espinha causada pelo mesmo vício que me deixou banguela minutos antes.
Sei que a foto ficou muito aquém do nível da revista, espero de coração receber um e-mail ou telefonema me dando outra chance de apresentar um material mais profissional, mas diante do ocorrido, achei por bem mandar essa mesma, para não passar por negligente e, caso ela seja publicada, sairá estampado mais de mim em seus pixels do que em qualquer uma outra.

sábado, 14 de abril de 2007

A BESTA DA SEXTA-FEIRA 13.




Foi um dia complicado, cheio de contratempos, da hora que acordei até os seus últimos minutos, quando o derradeiro aborrecimento me fez declinar de uma carona e voltar pra casa a pé. Pareceu-me razoável a oportunidade de esfriar a cabeça com uma caminhada.
Cerca de cinco quilômetros separam a pizzaria de minha casa, essa distância não é problema, porém há um desafio na última metade do trajeto. Em noites sem luar esse trecho de estrada é de uma escuridão palpável. Eu não tinha me lembrado disso quando decidi caminhar, bem como que era uma sexta-feira 13.
Não sou supersticioso e não tenho medo do escuro, mas confesso que quando me vi envolvido por aquele negrume, sobrou pouco sangue na adrenalina que corria em minhas veias. Senti arrepiar até os fios de cabelo que já não tenho mais. Sem querer, comecei a listar mentalmente todos os riscos que estava supostamente correndo: Atropelamento, ataque de cachorro, assalto, seqüestro, mordida de cobra, abdução, vampirismo, Chupa-cabras e enfarte, o que era o mais provável.
Ultimamente, por força das circunstâncias, ando praticado muito aquela máxima: “Se te derem um limão, faça uma limonada”. Tenho feito isso com tanta constância que estou pensando em abrir uma barraquinha de refresco.
Pois bem, lá vinha eu, virilmente arrepiado, com meus heróicos olhos arregalados, tentando encontrar uma fórmula racional de fazer uma limonada com aquele container de limões que minha mente primitiva havia me presenteado. Busquei por referências em experiências alheias. Lembrei-me de Paulo Coelho em O Diário de Um Mago e seu confronto com um cachorro preto, recorri ao Amyr Klink num trecho de Paratii quando ele descreve a superação do medo pela necessidade da ação. Essas divagações me trouxeram de volta à razão e a cada passo fui relaxando e saboreando a tal limonada.
Já estava andando bem devagar, olhando para o céu em busca de estrelas conhecidas quando suspeitei que alguma coisa ou alguém mexeu na vegetação à beira do ribeirão sob a ponte que eu cruzava. Tentei me convencer de que estava ouvindo meus medos e nada mais. Só que essa alucinação era bem grande. Escutei claramente o barulho de algo pesado caindo dentro da água numa margem e saindo na outra. –Acorda! Isso é real! Ta aí ao lado! Berrou uma voz em minha cabeça.
Busquei identificar qualquer vulto, mas não conseguia ver nada além da faixa branca da estrada. O “ser” agora caminhava à minha direita, quebrando galhos com os pés. Pensei em atravessar a pista, cogitei parar, considerei até voltar. Esse drama se desenrolou por cerca de cem metros até que ouvi o barulho de um motor vindo de Joaquim Egídio, trafegava na pista contraria a que meu perseguidor e eu seguíamos. Os faróis do carro começaram a iluminar uma curva logo à frente. Parei. A “coisa” caminhou mais uns metros além de mim e também parou. Com o coração saindo pela boca seca, agucei os olhos na direção que supus “aquilo” estivesse. O carro aproximou-se em segundos intermináveis, suas luzes começaram a desenhar os contornos de tudo que nos cercava. Finalmente os faróis alinharam-se na nossa direção e revelaram a silhueta de uma enorme pedra há uns quatro metros adiante de mim. Uma pedra suspensa! Uma pedra com patas, hipnotizada pelos fachos do automóvel que diminuiu a velocidade para observá-la.
-PUTA-QUE-PARIU!!!! Gritei aliviado.
Estava gritando ainda quando o fusca passou por nós: -Eu sou uma besta! Você é uma capivara e eu sou uma besta! Eu sou uma besta! Muito prazer! Rá-rá-rá-rá!
O simpático roedor ignorou minha saudação e calmamente atravessou a estrada sumindo no mato.

Cheguei quase agora em casa, ainda rindo muito do vexame involuntário que o medo irracional me fez protagonizar.
Enquanto estava alimentando a Rita, minha cadela e confidente, narrei para ela como seria a história de hoje no blog. Aparentemente ela não entendeu direito o que era uma capivara, foi então que pensei em descrever o bicho como uma grande pedra roliça e marrom com patas. Estávamos felizes, eu com a descrição, ela com a refeição, quando senti uma picada no calcanhar direito. Imediatamente associei à capivara e gelei pensando no carrapato. Essa não! Capivara = Carrapato Estrela = Febre Maculosa.
Como um condenado, me sentei nessa cadeira de onde escrevo, acendi a luminária e, já me sentindo febril, arregacei a barra da calça até ver quem estava me picando.
-PUTA-QUE-PARIU!!!! –Eu sou uma besta! É só um carrapicho na meia e eu sou uma besta, a besta da sexta-feira 13! Rá-rá-rá-rá!

segunda-feira, 9 de abril de 2007

MOISÉS


Foi semana passada, terça feira, eu acho. Já estava quase chegando no asfalto, finalizando minha habitual caminhada, quando um Fiat Palio emparelhou ao meu lado, dentro dele duas moças, visivelmente aflitas, gesticulavam para que eu parasse. Retirei dos ouvidos os fones do MP3 e me reclinei para ouvi-las.
-Moço! Você veio dessa estrada... Não viu nenhum cachorro perdido?
Passei mentalmente o filminho daquela manhã e me surpreendi por não lembrar de ter visto cachorro algum. Topei com vacas, cavalos, leitões desgarrados, seriema, sagüis, esquilos, um lagartão tomando sol, mas nenhum cachorro. Disse a elas que sentia muito, mas não podia ajuda-las.
Desconsolada, a que estava ao volante, me entregou um Post-It cor-de-rosa com os nomes de Tatiana, Yeda e Moisés e um número de celular. Informou que Moisés era o nome do cachorro, que ele era muito manso, que eu poderia me aproximar sem receio, caso o encontrasse. Pedi uma descrição do bicho e fiquei sabendo que se tratava de um “sem raça definida” (uma maneira caninamente correta de se referir aos vira-latas), que era de cor escura, parecia um pouco com pastor-alemão e tinha olhos de husky-siberiano, porém de tamanho médio. Prometi ficar atento e se visse um cachorro com essas características e que ligaria se o encontrasse.
Desejei boa-sorte às duas e continuei meu caminho pra casa. No centro do nosso vilarejo encontrei vários peludos das mais diferentes formas e tamanhos. Joaquim Egídio está se transformando numa espécie de “despejo” de cachorros cujos donos, oriundos de outros bairros, costumam “esquece-los” nos finais de semana. Não temos indigentes humanos, mas uma multidão de caninos abandonados que cresce sem parar. Nenhum deles se parecia com pastor ou tinha olhos de husky... Imaginei que Moisés tivesse sido atraído pelo cio de uma das inúmeras cadelas que vivem nas ruas pacatas de Joaquim e que terminada a farra ele voltaria para seu lar.
No dia seguinte, quando ia para a trilha, vi cartazes com fotos em quase todos os postes. A foto era de Moisés. O texto era clássico: Criança doente e gratificação, porém a descrição do fujão não correspondia ao animal da foto. De novo, elas citavam “pintura de pastor” e “olhos de husky”, mas a fotografia exibia um vira-latas puro, tão bem cuidado quanto feinho, não consegui enxergar nada nele que se encaixasse ao que estava escrito.
Imediatamente me lembrei de uma fábula que minha mãe adorava contar sobre uma coruja que teve suas crias supostamente raptadas e saiu desesperada pela floresta perguntando a todos que encontrava se não haviam visto as “crianças mais bonitas do mundo”. Essa “mãe-coruja” foi quem tipificou o comportamento humano de mães e pais que agem como adoradores de seus filhos, ignorando as imperfeições e supervalorizando suas qualidades.
Fiquei imaginando a angústia maternal de Tatiana e Yeda e voltei pra casa para apanhar o celular. Na eventualidade de encontrar o cão boêmio, eu estaria preparado. Naquele dia caminhei mais de 10 km e infelizmente não vi nem sinal do Moisés.
Estou na torcida para que esse adorado vira-latas seja encontrado e volte para suas donas-corujas que tão bem me lembraram que a beleza está nos olhos de quem ama.

Ah é: Para quem não sabe, a fábula não termina bem: As corujinhas foram papadas pela melhor amiga de dona Mãe-Coruja, a senhora Gavião, que não fazia a mínima idéia de que aquelas criaturinhas horrendas que lhe serviram de almoço eram, na verdade, as famosas “crianças mais bonitas do mundo”. Assim contava minha mãe que, por sinal, me achava lindo.

domingo, 8 de abril de 2007

A PÁSCOA DE NARCISO.


Acordo com o repicar do sino da igreja cuja torre pode ser vista de casa. Ainda com os olhos fechados, tomo consciência de meu corpo e ele não se sente muito bem. Possivelmente fez frio durante a noite e eu devo ter me encolhido o que causou esse desconforto. Abro os olhos e percebo que o dia está nublado, no rádio-relógio são 9:02. O sino da igreja volta a soar, lembro que hoje é Páscoa. Venço a preguiça e vou cambaleando até a geladeira, engulo o remédio da pressão com um bom gole de Coca-Light. Pela janela da sala avalio o clima mais atentamente e sinto um desânimo tremendo, tinha tantos planos de faxina para hoje. Acendo o primeiro cigarro e caminho para o banheiro, tentando refazer mentalmente minha agenda. Desisto. Jogo o cigarro no vaso, lavo o rosto, molho os cabelos e a nuca com água fria pra ver se acordo de vez. Escovo os dentes com a cabeça baixa, mirando o ralo da pia, evito me olhar no espelho. Pego, sobre o cesto de roupas, o short preto que usei ontem, volto para o quarto, calço meias brancas, o tênis velho e uma camiseta regata. Passo de novo pela cozinha e ponho na boca um triangulo de Toblerone Dark que comprei ontem à noite numa loja de conveniência. Sento-me à frente do computador e deixo o chocolate derreter no calor da boca, delicioso. Como acontece sempre aos domingos, o Virtua está sem conexão. Não tenho nenhum e-mail novo e estou sem possibilidade receber ou desejar Boa-Páscoa pelo Messenger. Desligo o monitor, ajusto a pequena pochete à cintura, verifico seu conteúdo: O MP3, um pouquinho de dinheiro, um maço de cigarros, o isqueiro paraguaio... Meto um boné na cabeça, saio pra varanda, olho novamente para o céu e quase volto pra cama. Sem muita convicção tranco a porta e enfio também as chaves na pochete. Acendo mais um cigarro e enquanto fumo, fico observando a Kombi que amanhã irá para a pintura, outro conflito se instala: Ela ficará linda, mas eu estarei a pé por uns vinte dias.
Livro-me do cigarro e começo a andar em direção à igreja, logo mudo de idéia e tomo o sentido contrário, resolvo que hoje vou caminhar mais com os olhos e menos com o corpo. Atravesso vagarosamente a pequena vila olhando seu casario que lembra Paraty, especialmente hoje, pelo clima abafado. Saio da rua principal e atravesso a pequena ponte ao lado da capelinha de Santa Rita de Cassia, chegando à trilha. Diferente de todos os dias, dobro à esquerda e acelero em sentido à Sousas. Vejo umas crianças lambuzadas de chocolate e as lembranças de domingos de Páscoa começam a pipocar em minha cabeça. Percebo que hoje é a primeira Páscoa “sem família”. Começo a rir quando identifico uma auto-piedade querendo se instalar em minha alma: Órfão de pai e mãe e descasado, não ganhei nem dei ovos de chocolate pra ninguém. Percebendo que aquele demoniozinho depressivo pretende me acompanhar, aperto o passo e começo a correr, ponho toda minha atenção na respiração, nas passadas e no Milton Nascimento que canta em meus ouvidos. Assim vou até encontrar o asfalto, cerca de um km depois. Faço meia volta e retomo a trilha, agora caminhando e com um humor mais decente. Continuo nesse ritmo até a outra extremidade do circuito principal e lá entro na estrada de terra que leva às montanhas e ao Pico das Cabras. Os primeiros oitenta metros dessa via são extremamente íngremes e eu prefiro vence-los correndo que andando. Logo que inicio a subida escuto, mesmo com os fones de ouvido, o ronco surdo de um motor “Volkswagen a Ar” vindo em minha retaguarda. Fico o mais à direita possível para permitir a passagem do que suponho ser uma Brasília velha. Logo a aceleração do carro diminui e vejo ao meu lado um Bug amarelo com quatro moças gesticulando e gritando. Na faixa dos 30 anos, estão se comportando como adolescentes. Tiro o fone de ouvido e escuto a morena que está em pé no banco traseiro, usando uma tiara com orelhas de lebre gritar: -Corre coelhinho! Corre!
Olho pra traz para ver com quem elas estão mexendo e não vejo ninguém. –É com você mesmo coelhinho! Corre! Todas gargalham ao mesmo tempo enquanto o Bug acelera suavemente e toma distância. Fazem tchau, eu retribuo sorrindo e continuo minha corridinha enquanto elas somem na curva.
Suponho que elas estão passando o feriadão hospedadas em alguma fazenda de região e resolveram azarar os caipiras do pedaço. De qualquer forma, salvaram minha manhã nublada. Aquela brincadeira inocente mudou por completo minha perspectiva para hoje.
Mais uns dois km de corrida e chego à ponte do Ribeirão das Nascentes, onde aproveito as amuradas como apoio para alongar e fazer algumas flexões enquanto contemplo o pequeno curso d’água que serpenteia entre as pedras lá em baixo.
Não se passam nem cinco minutos de minha chegada, escuto novamente o barulho do Bug voltando. Elas surgem de trás do bambuzal na mesma alegria de antes, pulando e gritando todas ao mesmo tempo, dão a impressão de que ainda estão no pique desde o Carnaval.
Ao me verem sobre a ponte, diminuem a velocidade, quase param e retomam as gozações: -Cansou coelhinho? Agora é a motorista loura quem está usando as orelhas de lebre. A morena do banco de trás sabe assobiar alto com dois dedos na boca: -Fiu-fiuuuuu!
Somem novamente na estrada deixando pra trás somente a poeira e o som de suas risadas.
Fico por ali, mais um tempo, ponderando que aquela manhã feia que quase me fez voltar pra cama acabou se tornando a mais divertida em meses, a alegria daquelas “meninas” iluminou minha Páscoa.
Começo o retorno pra casa com passos lentos, percebo que carrego na cara um sorriso pateta e me divirto muito quando descubro que ele está ali desde o “fiu-fiuuuu” da morena. Agora nem adianta tentar disfarçar, ele vai demorar pra sumir.
Paro na lanchonete do posto de gasolina, peço uma salada de frutas, tomo um café e acendo um cigarro. O sorriso pateta continua estampado em meu rosto e me leva a racionalizar que nada daquilo tinha sido dirigido pra mim, que eu simplesmente estava no caminho da felicidade delas e fui alvo de uma brincadeira sem maiores conseqüências. Descubro então que, seja lá qual fosse a motivação delas, eu estava, agora, tentando me boicotar e paro de pensar no assunto, fico apenas curtindo o tal sorriso e deixo que ele tome conta de tudo. Pago a conta da lanchonete, começa a chover e eu acho ótimo.
Vou pra casa sem pressa, deixando a chuva gelada lavar meu corpo e minha alma, praticando uma espécie de batismo de “vida renovada” pelo milagre da Páscoa e de um assobio pra lá de bem-vindo.
Na varanda de casa, ensopado, tiro os tênis, as meias e a camiseta. Destranco a porta e ando rapidamente em direção ao banheiro, mas me detenho diante do espelho grande do corredor. Quase morro de vergonha de mim mesmo quando escuto minha própria voz dizendo: -É... Num ta ruim, não!
Solto uma gargalhada, abandono os pudores intelectuais, acendo a luz e me entrego ao narcisismo explicito. Só o short preto testemunha a minuciosa análise que faço do meu corpo. Desde Fevereiro sem consumir álcool e carne, caminhando e correndo todos os dias, desinchei uns seis quilos. Já não há mais barriga, ou nada no abdomem que avance além da linha do peito, os pneuzinhos desapareceram e sobre os ossos do quadril, agora perceptíveis, o que era convexo tornou-se côncavo, dando a impressão de que o tórax alargou. Perdi centímetros também nos braços e pernas, o que poderia sugerir que fiquei mais fraco, mas há uma harmonia no conjunto, nada de espetacular, mas está harmonioso.
Alcanço a toalha e enquanto me enxugo, fico pensando na capacidade extraordinária de regeneração desse nosso “veículo”, como ele está sempre pronto a voltar ao equilíbrio quando lhe damos oportunidade. Penso ainda que o corpo é o único “bem material” ao qual deveríamos nos apegar, porém, quase nunca cogitamos isso, pois é penoso demais para nós abdicar dos deliciosos maus hábitos que tanto nos seduzem.
O providencial assobio da morena me fez perceber que nesses sessenta dias houve uma notável melhora em minha aparência, também em minha disposição e agora em minha auto-estima. Vou aproveitar esse estímulo e, com o sorriso pateta, tirar também de minha vida as toxinas mentais e sociais que me depreciam e me fazem dependente da aprovação alheia ou de um dia de sol para estar feliz.
Se Páscoa é vida nova, hoje eu recomecei muito bem.
E viva o “fiu-fiuuuuuu”!

domingo, 1 de abril de 2007

PRIMEIRO DE ABRIL




O primeiro de Abril amanheceu lindo. Um domingo de verdade!
As trilhas, habitualmente desertas durante a semana, hoje estavam apinhadas de caminhantes, corredores, ciclistas e cavaleiros de todas as idades, coloridos, equipados, em grupos ou sozinhos, várias famílias representadas em três gerações.


ºo0O0oº



Um pit-bull empaca no meio da ponte mais estreita da trilha e produz um enorme coco, para vergonha de seu musculoso dono que puxa inutilmente o bicho pela coleira, tentando arrasta-lo para um local mais discreto.

Mais adiante, dois casais se reconhecem, trocam beijinhos. O poodle do casal Nº.1 acha que beijinho é pouco e se atraca na perna da moça do casal Nº.2 para constrangimento dos quatro. A dona do peludo dá uma bronca sem muita convicção: -Pára Fô! Assim mamãe não gosta! Não pude disfarçar minha risada quando tentei adivinhar o nome completo do cachorro: Seria Fofo ou Fodão?

Contra o sol, vejo a silhueta magnífica de uma mulher que vem em sentido contrário, mais desfilando do que caminhando. Conforme se aproxima posso identificar os logotipos da Nike espalhados no tênis, na calça de lycra e finalmente na camiseta regata curtíssima que balança graciosamente sustentada pelos seios perfeitamente esféricos. Quando nos cruzamos, consigo enxergar seu rosto, semi-oculto por um par de óculos enorme. Os mais de cinqüenta verões denunciam: Quase nada nela é de verdade, são as maravilhas da cirurgia plástica: Botox, lipo e silicone. Mas tudo bem, afinal hoje é 1º. De Abril

Saio da trilha principal e começo a correr bem suavemente, mas logo tenho que me proteger no barranco para não ser atropelado por uma dúzia de motos off-road que passam rente a mim, levantando uma poeira infernal. Depois de resmungar uns palavrões contra os “forasteiros de finais de semana” decido que hoje, como qualquer domingo, não é um bom dia para correr, apenas para caminhar e observar o comportamento de toda essa gente que sai de seus apartamentos e bairros urbanos e vem pra Joaquim Egídio para “encontrar a paz junto à natureza”.

São predominantemente de classe média, podem se presentear com roupas de grifes, bicicletas caras e possuir cachorros com pedigrees de se pendurar na parede, ao lado do diploma de conclusão do curso superior. A grande maioria freqüenta as trilhas com um propósito que pode ser alcançado num corredor de shopping qualquer: Ver e ser visto. É incrível como gente gosta de gente, de usar máscaras e se aglomerar para comparar seu personagem às interpretações e “guarda-roupas” de seus semelhantes.

Mesmo eu, que subi nesse altar do cinismo investigativo do comportamento humano, estou representando algum papel nesse momento, mas alguém tinha que contar essa história e propor uma nova data revolucionária. Quero criar o dia da verdade, 24 horas sendo nós mesmos, escancaradamente.

A nova versão da historinha seria mais ou menos assim, se hoje fosse o dia da verdade:

Aquele rapaz fortão que tentava arrastar o pit-bull, estaria humildemente pedindo desculpas aos passantes pela inconveniência do local escolhido pelo cão para depositar seus dejetos, ainda se justificando sobre que aquela quantidade desmedida de músculos em seu corpo, bem como possuir um cachorro com fama de feroz eram apenas meios dele esconder uma insegurança incontrolável.

Os casais que se viram constrangidos com o comportamento do Poodle tarado da “mamãe”, certamente sairiam no tapa: -Credo! Que bicho nojento! Diria a moça do casal Nº. 2, ao que reagiria ofendida a “mãe” do canídeo: -Nojento nada, você é que deve estar cheirando como uma cadela. Já o maridão do casal Nº.1 que provavelmente não suporta o cachorrinho da “mamãe” emendaria: -Acho que o “Fô” não é tão estúpido assim, ele leu meus pensamentos... Tragédia na certa.

Aquela senhora “restaurada” estaria caminhando ainda só, porém nua, com uma placa na mão: “Nunca soube ser amada, quero ser admirada”.

Os motoqueiros, encouraçados em suas armaduras de plástico multicoloridas, montando seus veículos fedidos e barulhentos, admitiriam estarem vivendo uma fantasia onde se imaginam heróis guerreiros em busca de um sentido nobre para suas existências. Que foi essa maneira que encontraram de suportar a pequenez de suas vidinhas.

Finalmente eu, depois de esperar a poeira das motos baixar, amaldiçoar os forasteiros, desistir de correr, decidiria apenas caminhar e observar essa gente que vem aqui exibir suas verdades, tentaria, sem dúvida, especular sobre as estranhas mentiras que escondem essas almas.