Acordo com o repicar do sino da igreja cuja torre pode ser vista de casa. Ainda com os olhos fechados, tomo consciência de meu corpo e ele não se sente muito bem. Possivelmente fez frio durante a noite e eu devo ter me encolhido o que causou esse desconforto. Abro os olhos e percebo que o dia está nublado, no rádio-relógio são 9:02. O sino da igreja volta a soar, lembro que hoje é Páscoa. Venço a preguiça e vou cambaleando até a geladeira, engulo o remédio da pressão com um bom gole de Coca-Light. Pela janela da sala avalio o clima mais atentamente e sinto um desânimo tremendo, tinha tantos planos de faxina para hoje. Acendo o primeiro cigarro e caminho para o banheiro, tentando refazer mentalmente minha agenda. Desisto. Jogo o cigarro no vaso, lavo o rosto, molho os cabelos e a nuca com água fria pra ver se acordo de vez. Escovo os dentes com a cabeça baixa, mirando o ralo da pia, evito me olhar no espelho. Pego, sobre o cesto de roupas, o short preto que usei ontem, volto para o quarto, calço meias brancas, o tênis velho e uma camiseta regata. Passo de novo pela cozinha e ponho na boca um triangulo de Toblerone Dark que comprei ontem à noite numa loja de conveniência. Sento-me à frente do computador e deixo o chocolate derreter no calor da boca, delicioso. Como acontece sempre aos domingos, o Virtua está sem conexão. Não tenho nenhum e-mail novo e estou sem possibilidade receber ou desejar Boa-Páscoa pelo Messenger. Desligo o monitor, ajusto a pequena pochete à cintura, verifico seu conteúdo: O MP3, um pouquinho de dinheiro, um maço de cigarros, o isqueiro paraguaio... Meto um boné na cabeça, saio pra varanda, olho novamente para o céu e quase volto pra cama. Sem muita convicção tranco a porta e enfio também as chaves na pochete. Acendo mais um cigarro e enquanto fumo, fico observando a Kombi que amanhã irá para a pintura, outro conflito se instala: Ela ficará linda, mas eu estarei a pé por uns vinte dias.
Livro-me do cigarro e começo a andar em direção à igreja, logo mudo de idéia e tomo o sentido contrário, resolvo que hoje vou caminhar mais com os olhos e menos com o corpo. Atravesso vagarosamente a pequena vila olhando seu casario que lembra Paraty, especialmente hoje, pelo clima abafado. Saio da rua principal e atravesso a pequena ponte ao lado da capelinha de Santa Rita de Cassia, chegando à trilha. Diferente de todos os dias, dobro à esquerda e acelero em sentido à Sousas. Vejo umas crianças lambuzadas de chocolate e as lembranças de domingos de Páscoa começam a pipocar em minha cabeça. Percebo que hoje é a primeira Páscoa “sem família”. Começo a rir quando identifico uma auto-piedade querendo se instalar em minha alma: Órfão de pai e mãe e descasado, não ganhei nem dei ovos de chocolate pra ninguém. Percebendo que aquele demoniozinho depressivo pretende me acompanhar, aperto o passo e começo a correr, ponho toda minha atenção na respiração, nas passadas e no Milton Nascimento que canta em meus ouvidos. Assim vou até encontrar o asfalto, cerca de um km depois. Faço meia volta e retomo a trilha, agora caminhando e com um humor mais decente. Continuo nesse ritmo até a outra extremidade do circuito principal e lá entro na estrada de terra que leva às montanhas e ao Pico das Cabras. Os primeiros oitenta metros dessa via são extremamente íngremes e eu prefiro vence-los correndo que andando. Logo que inicio a subida escuto, mesmo com os fones de ouvido, o ronco surdo de um motor “Volkswagen a Ar” vindo em minha retaguarda. Fico o mais à direita possível para permitir a passagem do que suponho ser uma Brasília velha. Logo a aceleração do carro diminui e vejo ao meu lado um Bug amarelo com quatro moças gesticulando e gritando. Na faixa dos 30 anos, estão se comportando como adolescentes. Tiro o fone de ouvido e escuto a morena que está em pé no banco traseiro, usando uma tiara com orelhas de lebre gritar: -Corre coelhinho! Corre!
Olho pra traz para ver com quem elas estão mexendo e não vejo ninguém. –É com você mesmo coelhinho! Corre! Todas gargalham ao mesmo tempo enquanto o Bug acelera suavemente e toma distância. Fazem tchau, eu retribuo sorrindo e continuo minha corridinha enquanto elas somem na curva.
Suponho que elas estão passando o feriadão hospedadas em alguma fazenda de região e resolveram azarar os caipiras do pedaço. De qualquer forma, salvaram minha manhã nublada. Aquela brincadeira inocente mudou por completo minha perspectiva para hoje.
Mais uns dois km de corrida e chego à ponte do Ribeirão das Nascentes, onde aproveito as amuradas como apoio para alongar e fazer algumas flexões enquanto contemplo o pequeno curso d’água que serpenteia entre as pedras lá em baixo.
Não se passam nem cinco minutos de minha chegada, escuto novamente o barulho do Bug voltando. Elas surgem de trás do bambuzal na mesma alegria de antes, pulando e gritando todas ao mesmo tempo, dão a impressão de que ainda estão no pique desde o Carnaval.
Ao me verem sobre a ponte, diminuem a velocidade, quase param e retomam as gozações: -Cansou coelhinho? Agora é a motorista loura quem está usando as orelhas de lebre. A morena do banco de trás sabe assobiar alto com dois dedos na boca: -Fiu-fiuuuuu!
Somem novamente na estrada deixando pra trás somente a poeira e o som de suas risadas.
Fico por ali, mais um tempo, ponderando que aquela manhã feia que quase me fez voltar pra cama acabou se tornando a mais divertida em meses, a alegria daquelas “meninas” iluminou minha Páscoa.
Começo o retorno pra casa com passos lentos, percebo que carrego na cara um sorriso pateta e me divirto muito quando descubro que ele está ali desde o “fiu-fiuuuu” da morena. Agora nem adianta tentar disfarçar, ele vai demorar pra sumir.
Paro na lanchonete do posto de gasolina, peço uma salada de frutas, tomo um café e acendo um cigarro. O sorriso pateta continua estampado em meu rosto e me leva a racionalizar que nada daquilo tinha sido dirigido pra mim, que eu simplesmente estava no caminho da felicidade delas e fui alvo de uma brincadeira sem maiores conseqüências. Descubro então que, seja lá qual fosse a motivação delas, eu estava, agora, tentando me boicotar e paro de pensar no assunto, fico apenas curtindo o tal sorriso e deixo que ele tome conta de tudo. Pago a conta da lanchonete, começa a chover e eu acho ótimo.
Vou pra casa sem pressa, deixando a chuva gelada lavar meu corpo e minha alma, praticando uma espécie de batismo de “vida renovada” pelo milagre da Páscoa e de um assobio pra lá de bem-vindo.
Na varanda de casa, ensopado, tiro os tênis, as meias e a camiseta. Destranco a porta e ando rapidamente em direção ao banheiro, mas me detenho diante do espelho grande do corredor. Quase morro de vergonha de mim mesmo quando escuto minha própria voz dizendo: -É... Num ta ruim, não!
Solto uma gargalhada, abandono os pudores intelectuais, acendo a luz e me entrego ao narcisismo explicito. Só o short preto testemunha a minuciosa análise que faço do meu corpo. Desde Fevereiro sem consumir álcool e carne, caminhando e correndo todos os dias, desinchei uns seis quilos. Já não há mais barriga, ou nada no abdomem que avance além da linha do peito, os pneuzinhos desapareceram e sobre os ossos do quadril, agora perceptíveis, o que era convexo tornou-se côncavo, dando a impressão de que o tórax alargou. Perdi centímetros também nos braços e pernas, o que poderia sugerir que fiquei mais fraco, mas há uma harmonia no conjunto, nada de espetacular, mas está harmonioso.
Alcanço a toalha e enquanto me enxugo, fico pensando na capacidade extraordinária de regeneração desse nosso “veículo”, como ele está sempre pronto a voltar ao equilíbrio quando lhe damos oportunidade. Penso ainda que o corpo é o único “bem material” ao qual deveríamos nos apegar, porém, quase nunca cogitamos isso, pois é penoso demais para nós abdicar dos deliciosos maus hábitos que tanto nos seduzem.
O providencial assobio da morena me fez perceber que nesses sessenta dias houve uma notável melhora em minha aparência, também em minha disposição e agora em minha auto-estima. Vou aproveitar esse estímulo e, com o sorriso pateta, tirar também de minha vida as toxinas mentais e sociais que me depreciam e me fazem dependente da aprovação alheia ou de um dia de sol para estar feliz.
Se Páscoa é vida nova, hoje eu recomecei muito bem.
E viva o “fiu-fiuuuuuu”!
Livro-me do cigarro e começo a andar em direção à igreja, logo mudo de idéia e tomo o sentido contrário, resolvo que hoje vou caminhar mais com os olhos e menos com o corpo. Atravesso vagarosamente a pequena vila olhando seu casario que lembra Paraty, especialmente hoje, pelo clima abafado. Saio da rua principal e atravesso a pequena ponte ao lado da capelinha de Santa Rita de Cassia, chegando à trilha. Diferente de todos os dias, dobro à esquerda e acelero em sentido à Sousas. Vejo umas crianças lambuzadas de chocolate e as lembranças de domingos de Páscoa começam a pipocar em minha cabeça. Percebo que hoje é a primeira Páscoa “sem família”. Começo a rir quando identifico uma auto-piedade querendo se instalar em minha alma: Órfão de pai e mãe e descasado, não ganhei nem dei ovos de chocolate pra ninguém. Percebendo que aquele demoniozinho depressivo pretende me acompanhar, aperto o passo e começo a correr, ponho toda minha atenção na respiração, nas passadas e no Milton Nascimento que canta em meus ouvidos. Assim vou até encontrar o asfalto, cerca de um km depois. Faço meia volta e retomo a trilha, agora caminhando e com um humor mais decente. Continuo nesse ritmo até a outra extremidade do circuito principal e lá entro na estrada de terra que leva às montanhas e ao Pico das Cabras. Os primeiros oitenta metros dessa via são extremamente íngremes e eu prefiro vence-los correndo que andando. Logo que inicio a subida escuto, mesmo com os fones de ouvido, o ronco surdo de um motor “Volkswagen a Ar” vindo em minha retaguarda. Fico o mais à direita possível para permitir a passagem do que suponho ser uma Brasília velha. Logo a aceleração do carro diminui e vejo ao meu lado um Bug amarelo com quatro moças gesticulando e gritando. Na faixa dos 30 anos, estão se comportando como adolescentes. Tiro o fone de ouvido e escuto a morena que está em pé no banco traseiro, usando uma tiara com orelhas de lebre gritar: -Corre coelhinho! Corre!
Olho pra traz para ver com quem elas estão mexendo e não vejo ninguém. –É com você mesmo coelhinho! Corre! Todas gargalham ao mesmo tempo enquanto o Bug acelera suavemente e toma distância. Fazem tchau, eu retribuo sorrindo e continuo minha corridinha enquanto elas somem na curva.
Suponho que elas estão passando o feriadão hospedadas em alguma fazenda de região e resolveram azarar os caipiras do pedaço. De qualquer forma, salvaram minha manhã nublada. Aquela brincadeira inocente mudou por completo minha perspectiva para hoje.
Mais uns dois km de corrida e chego à ponte do Ribeirão das Nascentes, onde aproveito as amuradas como apoio para alongar e fazer algumas flexões enquanto contemplo o pequeno curso d’água que serpenteia entre as pedras lá em baixo.
Não se passam nem cinco minutos de minha chegada, escuto novamente o barulho do Bug voltando. Elas surgem de trás do bambuzal na mesma alegria de antes, pulando e gritando todas ao mesmo tempo, dão a impressão de que ainda estão no pique desde o Carnaval.
Ao me verem sobre a ponte, diminuem a velocidade, quase param e retomam as gozações: -Cansou coelhinho? Agora é a motorista loura quem está usando as orelhas de lebre. A morena do banco de trás sabe assobiar alto com dois dedos na boca: -Fiu-fiuuuuu!
Somem novamente na estrada deixando pra trás somente a poeira e o som de suas risadas.
Fico por ali, mais um tempo, ponderando que aquela manhã feia que quase me fez voltar pra cama acabou se tornando a mais divertida em meses, a alegria daquelas “meninas” iluminou minha Páscoa.
Começo o retorno pra casa com passos lentos, percebo que carrego na cara um sorriso pateta e me divirto muito quando descubro que ele está ali desde o “fiu-fiuuuu” da morena. Agora nem adianta tentar disfarçar, ele vai demorar pra sumir.
Paro na lanchonete do posto de gasolina, peço uma salada de frutas, tomo um café e acendo um cigarro. O sorriso pateta continua estampado em meu rosto e me leva a racionalizar que nada daquilo tinha sido dirigido pra mim, que eu simplesmente estava no caminho da felicidade delas e fui alvo de uma brincadeira sem maiores conseqüências. Descubro então que, seja lá qual fosse a motivação delas, eu estava, agora, tentando me boicotar e paro de pensar no assunto, fico apenas curtindo o tal sorriso e deixo que ele tome conta de tudo. Pago a conta da lanchonete, começa a chover e eu acho ótimo.
Vou pra casa sem pressa, deixando a chuva gelada lavar meu corpo e minha alma, praticando uma espécie de batismo de “vida renovada” pelo milagre da Páscoa e de um assobio pra lá de bem-vindo.
Na varanda de casa, ensopado, tiro os tênis, as meias e a camiseta. Destranco a porta e ando rapidamente em direção ao banheiro, mas me detenho diante do espelho grande do corredor. Quase morro de vergonha de mim mesmo quando escuto minha própria voz dizendo: -É... Num ta ruim, não!
Solto uma gargalhada, abandono os pudores intelectuais, acendo a luz e me entrego ao narcisismo explicito. Só o short preto testemunha a minuciosa análise que faço do meu corpo. Desde Fevereiro sem consumir álcool e carne, caminhando e correndo todos os dias, desinchei uns seis quilos. Já não há mais barriga, ou nada no abdomem que avance além da linha do peito, os pneuzinhos desapareceram e sobre os ossos do quadril, agora perceptíveis, o que era convexo tornou-se côncavo, dando a impressão de que o tórax alargou. Perdi centímetros também nos braços e pernas, o que poderia sugerir que fiquei mais fraco, mas há uma harmonia no conjunto, nada de espetacular, mas está harmonioso.
Alcanço a toalha e enquanto me enxugo, fico pensando na capacidade extraordinária de regeneração desse nosso “veículo”, como ele está sempre pronto a voltar ao equilíbrio quando lhe damos oportunidade. Penso ainda que o corpo é o único “bem material” ao qual deveríamos nos apegar, porém, quase nunca cogitamos isso, pois é penoso demais para nós abdicar dos deliciosos maus hábitos que tanto nos seduzem.
O providencial assobio da morena me fez perceber que nesses sessenta dias houve uma notável melhora em minha aparência, também em minha disposição e agora em minha auto-estima. Vou aproveitar esse estímulo e, com o sorriso pateta, tirar também de minha vida as toxinas mentais e sociais que me depreciam e me fazem dependente da aprovação alheia ou de um dia de sol para estar feliz.
Se Páscoa é vida nova, hoje eu recomecei muito bem.
E viva o “fiu-fiuuuuuu”!
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