quinta-feira, 3 de maio de 2007

NOSSA SENHORA DA KOMBI


Não sou religioso, mas estou muito longe de ser ateu. Digamos que tenho bastante afinidade com a espiritualidade desde que mantida distante de templos e igrejas. De tempos em tempos me pego especulando doutrinas, mas nunca tive o necessário desprendimento intelectual para me entregar a alguma religião, de forma cega, como fazem os “verdadeiros crentes”, porém, alguns fatos ocorridos ao longo de minha vida, me fazem suspeitar que goze de certo prestígio “lá em cima”.
Sem querer parecer pretencioso nem, longe de mim, cometer blasfêmia, acho que Nossa Senhora é minha devota. Digo isso baseado numa série de acontecimentos da minha história pessoal na qual Ela se mostrou amorosamente presente. Questionei-me várias vezes o porquê dessa relação não ser recíproca. Já tentei reverencia-la na imagem clássica da Igreja Católica, experimentei encaixa-la na personalidade de Deus-Pai-Mãe das filosofias orientais, vê-la como a Mãe Divina dos nativos americanos e nem assim consegui desenvolver a devoção que, creio, Ela merece.
Soube por minha mãe que quando era bebê fui consagrado a Nossa Senhora num convento em que, supostamente, algumas freiras rezam por mim todos os dias desde então. Talvez seja por isso que nas horas de maior aflição ou de extrema alegria, ou ainda sem qualquer aviso, Ela se mostre ou interfira em meu benefício. São várias as minhas histórias com Ela, mas aqui vou contar uma que tem a ver com o foco desse blog: A Kombi.
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Eu devia ter nove ou dez anos e voltava da escola, sentado entre meus pais no banco da frente da Kombi. Nós três fazíamos o mesmo trajeto diariamente, por volta do meio dia. Minha mãe lecionava no pré-primário e eu, suponho, estava no quarto ano.
Mamãe abominava as Kombis que meu pai amava. Ela vivia repetindo que o carro não tinha frente e no caso de uma batida, sem dúvida, seríamos mortos. Já meu pai alegava que carro algum foi feito para se envolver em acidentes, especialmente pra bater de frente.
O velho Joaquim era um ótimo motorista, precavido e atento, aprendi com ele a dirigir mirando quadras à frente, me antecipando às intenções dos outros motoristas.
Nesse período, minha mãe passava por um “esgotamento nervoso”, como ela mesma dizia e seu comportamento dentro da perua era pra lá de paranóico. Por conta desse desequilíbrio emocional ela se tornou muito apegada aos costumes católicos e ao entrar no carro, benzia-se e rezava baixinho alguma prece, agarrava aquela alça do painel conhecida como “puta-que-pariu” com tamanha força que seus dedos ficavam brancos. Para desespero do meu pai ela encarnava o co-piloto e vinha por todo o caminho tendo faniquitos e causando sustos:
_Vai devagar! Cuidado, Joaquim! Olha o carro!
Não raro, isso terminava em acaloradas discussões.
Num desses dias, de inverno, creio, por conta da lembrança de estar usando o agasalho azul-marinho do uniforme escolar, foi meu pai quem gritou:
_Olha aquilo!
Ele se referia a um furgão Chevrolet, verde-exército, muito usado naquela época para entregar leite em garrafas retornáveis de um litro.
Estávamos descendo a Avenida Salles de Oliveira, na Vila Industrial num trecho que lembra uma montanha russa, imediatamente no final da descida começa um aclive forte, na altura das “garagens de trens” da extinta Fepasa.
O furgão vinha em sentido contrário, em alta velocidade e na contramão, piscando os faróis, buzinando e desviando, como podia dos outros carros. Resvalou num DKV que seguia a nossa frente, voltou para a pista correta e bateu de lado num ônibus que o trouxe de novo para nossa pista. Ele veio diretamente para nós, devia estar há uns dez metros quando tudo ficou escuro e escutei minha mãe gritar:
_Minha Nossa Senhora Aparecida!
Ela havia tapado meus olhos com sua mão direita que, inacreditavelmente, soltou o “puta-que-pariu”.
Eu vi o “filminho” de minha curta existência passar. Foi a primeira vez que isso me aconteceu.
A Kombi, que nessas alturas já estava imóvel, balançou violentamente antes de ouvirmos o estrondo de uma batida.
Lembro de minha mãe histérica, da buzina do Chevrolet disparada e do meu pai correndo para auxiliar o motorista que havia espatifado o furgão na lateral de um carro, há uns oito metros atrás de nós.
Enquanto minha mãe rezava e chorava, eu continuava atônito sentadinho no meio do banco dianteiro tentando entender o que havia acontecido.
Meu pai voltou com uma expressão aliviada, comentou que o motorista do furgão tinha perdido os freios e que, com o impacto, se machucou um pouco, nada grave. Depois foi avaliar o estrago na lateral direita da perua, por onde o furgão havia passado.
Ainda dentro da Kombi, me recordo perfeitamente de acompanhar sua cara passando pelas janelas laterais enquanto fazia a inspeção
De repente, sem motivo aparente, ele começou a chorar. Sentou-se na sarjeta, colocou o rosto entre as mãos e chorou copiosamente. Minha mãe desceu e eu a acompanhei. Ele tentava explicar alguma coisa, apontou para o carro e balbuciou “num cabe, num cabe”, diversas vezes.
Eu fui ver o que tinha acontecido com a perua e descobri que ela apenas tinha perdido a maçaneta externa da porta do passageiro, que já andava meio arreganhada, além disso, nenhum arranhão. Achei a peça na calçada há uns cinco metros da Kombi e fui entregá-la ao meu pai, na tentativa de consolá-lo e acabar com aquela situação constrangedora. O público se aglomerou para ver o acidente e ficamos no meio de um picadeiro.
Numa atitude ainda mais incomum e inesperada, meu pai me puxou pela mão para sentar ao seu lado na sarjeta. Com o braço sobre meus ombros ele me apertava, beijava minha cabeça e continuava a chorar. Eu também embalei no choro sem saber a razão, simplesmente fui contagiado pela a emoção dele. Ficamos ali uns bons minutos até ele se acalmar. Minha mãe sem entender o que estava acontecendo, sentou-se ao seu lado e ficou quieta.
Finalmente, depois de ensopar o lenço, entre fungadas, ele conseguiu insinuar o que tinha causado tamanho choro. Como era típico dele, mostrou ao lado da Kombi um poste, esperando que chegássemos à mesma conclusão óbvia que ele havia alcançado.
_Olha o poste! Falou pra minha mãe.
Ela foi lá, procurou por algum sinal de tinta do furgão e não encontrando nada, voltou com uma expressão de desentendida.
Didaticamente ele perguntou a ela como é que um furgão daquele tamanho poderia ter se espremido num espaço de apenas um metro entre a Kombi e o poste, com uma roda sobre a calçada e outra na rua.
Minha mãe, ingenuamente, falou que o furgão deveria ter passado entre o tal poste e o muro, o que causou uma leve irritação no meu pai.
_Mesmo se fosse assim, Clara, o espaço ali também é menor do que o furgão. E tem mais: Então me explique o chacoalhão que sentimos e o trinco da porta arrancado.
Aí foi a vez de minha mãe, "de ficha caída", desabar no choro. Ela falou diversas vezes em milagre, atribuiu a nossa sobrevivência ao clamor por Nossa Senhora que fez no último segundo, disse que tinha tampado meus olhos para que eu não visse a morte, que ela tinha certeza de que aquele era o nosso fim, repetia tudo isso com tal convicção que conseguiu me assustar ainda mais.
Concluímos, eu por falta de opção, que milagre era a única explicação para aquilo, já que meus pais também haviam fechado os olhos na hora do impacto e da mesma forma viram os seus “filminhos” serem exibidos. Coisa idêntica ocorreu com o motorista do furgão, inquerido por meu pai antes de irmos embora.

Enquanto papai era vivo, recordamos muitas vezes o episódio, como se nos beliscassemos para nos certificar de que tudo realmente ocorreu dessa maneira. Não contente, essa semana, passados uns 35 anos do "milagre", fui visitar o poste e, com meu carro parado no mesmo lugar onde a Kombi estava, tentando ser o mais cético que pude, tive certeza da impossibilidade física daquilo ter acontecido. Mas aconteceu.
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Essa história ficou esquecida em alguma gaveta de memórias da minha infância e só veio à tona quando comprei a Hebe em janeiro último. Em meio a um monte de lixo que tirei de trás do seu banco dianteiro, encontrei um antigo imã com uma imagem desbotada de Nossa Senhora de Aparecida que fiz questão de preservar e vai, evidentemente, decorar o painel da perua. Mais uma: A oficina do Pedrinho, onde a perua está sendo restaurada, chama-se também Nossa Senhora Aparecida, como pode ser vista numa das fotos do álbum.
Para diminuir minha dívida com Ela, tenho pensado em fazer a viagem inaugural da Kombi restaurada para Aparecida do Norte, porque talvez, devoção seja uma questão de prática. Mas como eu não sei rezar, vou apenas mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar.* (Quem sabe o que perdemos ao fechar os olhos naquele instante?)
*Renato Teixeira em Romaria.

4 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado por Blog intiresny

Mondra disse...

Oi Cury,

Estava nesse momento lendo seu blog e rindo muito com suas "aventuras". Porém nesse post fiquei emocionado com sua história.
As vezes "coisas" acontecem em nossas vidas e não temos como atribuir nenhuma resposta lógica a não ser o milagre. Mas todos os dias acontecem pequenos milagres em nossas vidas, porém não nos atemos a eles.
conhecê-lo foi um desses pequenos milagres de meu dia-a-dia.
Grande abraço e fique na paz,
Edson

Cenáculo Cia. Teatral disse...

E, hoje, cerca de 40 anos depois, sua história serve como inspiração para o novo espetáculo da Cenáculo Cia. Teatral, "Nossinhora da Kombi". Baseando-se no relato em seu blog, a Cenáculo estreou a peça, em 28 de maio, no festival de teatro sacro Semearte, em São Paulo, e começa a partir de agora a circular com ela pelos teatros e igrejas do Brasil... Não sabemos o que perderam ao fechar os olhos naquele momento, mas sempre é possível abri-los para não perder mais nada...
Visite www.cenaculociateatral.blogspot.com

CESAR CURY disse...

Olá Amigos,

Fiquei muito feliz que minha história tenha inspirado uma peça teatral que proclama esse Divino Amor, que é como entendo e percebo Maria. Algum tempo depois que escrevi esse testemunho, ainda me questionando sobre a ausência de meu impulso devocional, tive uma nova e sublime experiência com Ela. Não posso afirmar que foram palavras, nem mesmo que tenha sido pensamento, só posso dizer que, de repente, fiquei sabendo de forma direta:

Ela não liga a mínima para minha devoção. Ela me ama e a única coisa que importa é que eu sei disso. Simples assim.

Abraços fraternos!
Alegria!